segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Momento de raiva - «Meu Galope é em Frente»

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Direis que não é poesia
e a mim que me importa?

Eu canto porque a voz nasce
e tem de libertar-se.
E grito porque respondo
às lanças que me espetam
e aos braços que me chamam.
E porque, dia e noite,
minhas mãos e meus olhos,
por estranhas telegrafias,
dos cantos mais ignotos
e das ilhas perdidas,
e dos campos esquecidos
e dos lagos remotos,
e dos montes,
recebem longas mensagens e comunicações:
para que grite e cante!

O meu grito e meu canto é a voz de milhões!
Por isso que me importa?
Eu canto e cantarei o que tiver a cantar
e grito e gritarei o que tiver a gritar
e falo e falarei o que tiver a falar!

Direis que não é poesia.
E a mim que importa?
se eu estou aqui apenas
para escancarar a porta
e derrubar os muros?
E a mim que importa
se vós sois afinal o que hei-de ultrapassar
e esmigalhar
em nome
de todos os futuros?

Eu sigo e seguirei
como um doido ou um anjo,
obstinado e heróico a caminho de nós
em palavras e acções.
Por todos os vendavais
e temporais
e multidões
nos cantos mais ignotos
e nas ilhas perdidas
e nos campos esquecidos
e nos lagos remotos
e nos montes
– por terra, mar e ar.

Direis que não é poesia
e a mim que me importa!

Convosco ou não, meu galope é em frente.
Pertenço a outra raça,
a outro mundo, a outra gente.
É andar, é andar!


(Mário Dionísio 1919/1993)

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3 comentários:

fatima disse...

Pertencemos. Não tenha disso a menor dúvida! ;))

fatima disse...

E já agora, ao "seu" D. Quixote" acrescento o Chico, nas suas sábias palavras:

E do amor gritou-se o escândalo
Do medo criou-se o trágico
No rosto pintou-se o pálido
E não rolou uma lágrima
Nem uma lástima para socorrer
E na gente deu o hábito
De caminhar pelas trevas
De murmurar entre as pregas
De tirar leite das pedras
De ver o tempo correr
Mas sob o sono dos séculos
Amanheceu o espetáculo
Como uma chuva de pétalas
Como se o céu vendo as penas
Morresse de pena
E chovesse o perdão
E a prudência dos sábios
Nem ousou conter nos lábios
O sorriso e a paixão

Pois transbordando de flores
A calma dos lagos zangou-se
A rosa-dos-ventos danou-se
O leito do rio fartou-se
E inundou de água doce
A amargura do mar
Numa enchente amazônica
Numa explosão atlântica
E a multidão vendo em pânico
E a multidão vendo atônita
Ainda que tarde o seu despertar

:)))

Milan Kem-Dera disse...

"E a multidão vendo atônita
Ainda que tarde o seu despertar
"

É que a multidão ainda não acordou completamente, por incrível que pareça!
E só irá mesmo acordar quando já fôr tarde de mais!...